sexta-feira, 23 de maio de 2014

No deserto

Passar pelo deserto é necessário para que se aprenda a deixar para trás a mentalidade de escravo e se passe a compreender a liberdade para a qual Cristo nos chamou.

Não é regra, mas quase sempre, após o sim para Deus, Ele nos conduz ao deserto.
Em toda a nossa existência, torna-se uma prática atravessar desertos. Que ninguém se engane com promessas de um mar de rosas e um mundo perfeito. Não nesta vida! Com certeza, e aguardada com dores de parto, somente no novo céu e nova terra, após a tão aguardada restauração da criação. Pois o Deus que tudo criou tem poder para recriar.

Mas veja, é no deserto que somos sacudidos e obrigados a refletir sobre as nossas ilusões, expectativas que nos alienam, nos afastam, inclusive, de quem amamos; também enxergamos os medos que mascaramos e dissolvemos em nossa busca frenética por realização e diversão.

No deserto o caminho não é claro, nem seguro, sol escaldante durante o dia e frio imenso à noite. Nenhuma distração, nada que seja atraente. Nele, o futuro é incerto, nos descobrimos vulneráveis, fragilizados e expostos aos nossos temores mais vis.

Mas deserto é lugar de encontro com Deus, de rendição do orgulho e da ilusão de sermos senhores do nosso destino. É o lugar da companhia divina, do silêncio que fala e onde o aquietar-se permite perceber a presença dEle.

O silêncio, nos torna mais sensíveis e atenciosos à voz de Deus.

É assim para todo o que quer andar com Ele. Para sermos livres precisamos nos afastar do mundo dos homens para entrarmos, a sós, no mundo de Deus. Um tempo no qual paixões, pressa, tensões, incertezas, vão, lentamente, cedendo espaço para percebermos o valor das coisas.

No deserto reduzimos nossas necessidades àquilo que é essencial. Afinal, muitas coisas não servirão para exatamente nada no deserto. O deserto traz uma outra dimensão das nossas reais necessidades.

Na solidão do deserto, descobrimos a suficiência da graça de Deus.

Aliás, Deus é a nossa necessidade primeira. De tudo que aprendemos no deserto, o mais importante é que, aquilo que mais necessitamos encontramos na comunhão com Deus. Ele, na verdade, será nossa única companhia durante a travessia.

A experiência deste atravessar conduz ao esvaziamento de nós mesmos, ao desapego dos ídolos que oferecem falsa segurança e à completa submissão à Deus e à sua vontade. Chega-se, durante os delírios ou nas tempestades de areia, a prometer, comprometer-se, arrepender-se.

É no deserto que aprendemos, ou reaprendemos, a ver a vida com a perspectiva da eternidade, ajudando-nos a colocar em ordem nossa lista de valores.

A verdadeira liberdade nasce no deserto. Foi no deserto que Jesus reafirmou sua identidade em obediência ao Pai. Não precisou de nenhum artifício para promover-se, nem utilizou-se de atalhos.

É aqui que nos libertamos dos falsos deuses, das mentiras e ilusões que nos fazem pessoas controladoras e manipuladoras.

O deserto rompe com a falsa sensação de que controlamos nosso destino e mostra-nos o quanto somos dependentes.

Finalmente, o deserto nos torna mais verdadeiros, amáveis, pacientes, livres e conscientes de nossa total dependência de Deus.


A Deus toda a glória!

Carlos R. Silva
outono  2014

Referências:
• Compilação do artigo:
   Ricardo B. Souza, O deserto e a liberdade. A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja

sábado, 3 de maio de 2014

A quem muito se perdoou

Por isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama.
Lucas 7:47

O tamanho do meu amor por Deus está relacionado diretamente à quantidade de pecados meus que ele perdoou.
Aquele que mais tem consciência do perdão recebido, esse é mais grato e amoroso. Trata-se de um fato da vida e acontece em pessoas de coração tratado e sadio.

Jesus foi convidado por Simão, um fariseu, para uma refeição em sua casa.
Jantar é uma ocasião apropriada para travar contato social - oferece-se algo, honra-se alguém, introduz-se alguém em nossa casa. Mas a relação de jantar não deixa de exibir certa formalidade - o convidado dificilmente passa da sala de visitas para a intimidade da casa, a conversa se desenrola agradável, evitam-se temas polêmicos. É um relacionamento ao redor de uma mesa, onde a comunicação através do olhar é forte e, assim como a mesa esconde o corpo, também a relação fica a nível de cabeça, da cintura para cima.

Lá estavam os convidados à mesa, que geralmente era em forma de um U, com o anfitrião e o principal convidado ao centro.

De repente, um fato embaraçoso, não para Jesus, mas para Simão, o anfitrião, que deflagrou, inclusive, a real intenção dele ao fazer o convite: uma mulher, ‘pecadora’, invadiu a festa, trouxe um vaso de perfume e colocou-se aos pés de Jesus. Depois os enxugou com seus cabelos, beijou-os e os ungiu com o perfume.
Nessas ocasiões, as mulheres eram excluídas dos salões. Portanto, a entrada de uma dama naquele recinto, mesmo sendo de alta reputação, chocaria fortemente a todos; mais ainda, se fosse ela conhecida por seus maus costumes. Foi o que se passou.

Para alguém que havia provado o vazio e a mentira do pecado, sua alma agora ansiava uma oportunidade para mudar de vida, mas as circunstâncias a impediam de realizar esse intento. Por fraqueza, por descuido, ou o que quer que tenha sido, ela caíra naqueles horrores. Mas, em seu coração, parece que guardava uma grande admiração pela virtude e — por incrível que pareça — em especial pela pureza. Sua sensibilidade física a arrastava aos enganos da carne e, portanto, à ofensa grave a Deus, mas a espiritual a convidava à paz de consciência, à mudança de vida e ao amor a Deus.

No auge desse dilema, certamente implorou várias vezes socorro ao Céu, mas também ouviu falar do surgimento de um grande profeta em Israel: os paralíticos andavam, os cegos enxergavam, os surdos ouviam, os mudos falavam e até os mortos ressuscitavam. Afinal, deve ter pensado ela, chegara o remédio para todos os males que atormentavam seu espírito tão carregado de recriminadoras aflições. Possivelmente não via a hora em que pudesse sentir-se purificada de suas manchas. Por debaixo de toda aquela lama havia uma alma que ardia de anseios por limpeza, por purificação.

As primeiríssimas reações de sua alma em relação a Jesus foram da mais entranhada simpatia. Ela O amou mais do que a si própria e ansiava pela oportunidade de se aproximar dele. Assim, “quando soube que estava à mesa em casa do fariseu”, decidiu enfrentar os rigores sociais e entrar na sala da ceia. Para chegar onde estava o Mestre, deu a volta pelo lado externo da mesa e “colocando-se a seus pés, por detrás dele, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas, e enxugava-os com os cabelos da sua cabeça, beijava-os, e os ungia com o perfume”, que trouxera num frasco de alabastro.

Antes, por seu desejo, andava a atrair a atenção de todos para si, agora, se ajoelha para servir. Os olhos com os quais ofendera a Deus, agora choravam de dor, de arrependimento, de gratidão. Seus cabelos, outrora vaidosamente penteados, ela os utilizava nesse momento como fino linho para enxugar os pés do Senhor. Os lábios que tanto proferiram palavras de insensatez consagravam-se em beijar os pés divinos. Por fim, elevava à categoria de instrumento de louvor o perfume usado em outras eras para aguçar sua vaidade.

Ela não se apresenta na mesa, vai por trás, vai aos pés, se humilha porque reconhece com o coração toda a grandeza de Jesus e provavelmente, não queria interferir nem interromper o banquete. Vai à base, os pés, chega de mansinho. Chega em lágrimas porque, neste momento, o relacionamento é mais de sensações e não de palavras - é de comoção intensa. Os místicos antigos falam do "batismo de lágrimas", significando a capacidade regeneradora que o Espírito Santo dá de chorar a partir da alma na presença de Jesus. Quem age neste estado não conversa, simplesmente ama. É quando consigo orar e me relacionar com Jesus na forma de silêncio e lágrimas, derramando profundos afetos perfumados na sua presença.

O fariseu não ficou muito à vontade com tantas demonstrações vindas de alguém, a seu ver, tão indigna. Parece que estas manifestações de afeto e gratidão, sufocadas pelo treino em obedecer a leis, não deveriam irromper. Pare ele, "ser profeta" significava julgar, condenar e afastar o impuro. 

E como somos críticos com essa afetividade que irrompe, tanto a nossa como a dos outros. Nossa religião não deixa espaços para relacionamentos profundos com cheiros e lágrimas, quer apenas comunhão social da mesma.

A cena para Simão era um escândalo. “Se este fosse profeta, com certeza saberia de que espécie é a mulher que O toca: uma pecadora”. Seu juízo é apressado e infundado.

Assim como não teve fé e amor para alegrar-se e apreciar o Mestre, faltou-lhe também o discernimento para, na ex-pecadora, ver e interpretar os sinais de um arrependimento perfeito, pois são notórios os efeitos do vício ou da virtude se estampados face. 

O orgulho do rigoroso e sábio legista levou-o a uma conclusão aparentemente lógica, mas na realidade precipitada. Além do mais, manifestou sua falsidade, pois, se concebeu no seu interior a convicção de estar diante de um homem comum e aguardou sua saída para provavelmente comentar com satisfação o aparente horror daquele escândalo, por que chamá-lo de Mestre? 

Além da falta de senso ou virtude para perceber na pecadora o dilúvio de graça que a alcançou, faltava ao fariseu humildade e fé para ver em Jesus o Filho de Deus.

Entretanto, a prova de quanto Jesus é profeta foi dada a Simão logo a seguir, no estilo tão apreciado naqueles tempos, através da parábola dos dois devedores. 
Dois réus. Ambos haviam ofendido a Deus em graus diferentes e necessitavam, portanto, do perdão. Qual deles ficou mais grato? Qual deles amou mais o seu Senhor?
"Suponho que aquele a quem foi perdoada a dívida maior", responde Simão. Dedução correta, lhe diz Jesus.

Mas por que, alguém com um julgamento tão correto, não põe em prática o que na teoria lhe é tão simples e familiar? Como alguém que procurava observar 613 mandamentos, que ao andar evitava andar em linha reta para não parecer orgulhoso, se esquece de ser solidário e de honrar um convidado importante, um mestre?

“Vê esta mulher? Entrei em sua casa, mas você não me deu água para lavar os pés; ela, porém, molhou os meus pés com as suas lágrimas e os enxugou com os seus cabelos.
Você não me saudou com um beijo, mas esta mulher, desde que entrei aqui, não parou de beijar os meus pés.
Você não ungiu a minha cabeça com óleo, mas ela derramou perfume nos meus pés. Portanto, eu lhe digo, os muitos pecados dela lhe foram perdoados, pelo que ela amou muito. Mas aquele a quem pouco foi perdoado, pouco ama".
Então Jesus disse a ela: "Seus pecados estão perdoados".

A pecadora estava tomada por um arrependimento perfeito e foram-lhe “perdoados os seus muitos pecados, por isso muito amou”. Quanto ao fariseu, o Senhor lhe mostra sua disposição em perdoá-lo, mas seria necessário, da parte dele, fé e mais amor. Era indispensável ao fariseu reconhecer seu débito para com Deus e pedir-lhe perdão, mas ele assim não procedeu, por ser orgulhoso.

Jesus sabe lidar com nosso lado racional, ele sempre tem algo a dizer para ele. Será que nós o escutamos? Parábolas são histórias para que a razão e a emoção entendam e acolham a mensagem da graça.

Nosso culto só com o "lado Simão" é insuficiente porque ele não se doa a Jesus com todo nosso ser. Não mexe com o corpo e com a emoção. É nosso lado perdido, nosso lado pecador que pode prestar o culto mais profundo que envolve o corpo todo.
É este encontro que atinge o nosso íntimo, que faz com que recebamos o seu perdão em todo nosso ser. Só a imersão completa na presença do Senhor permite que meu ser seja tocado na intimidade, permite que se vejam e sejam tratados os meandros e todos os cantos escuros do meu ser.

Quem é este Jesus, que lida de um jeito tão amoroso com o nosso lado perdido? É sua ternura para conosco que faz com que nossa alma queira se aproximar cada vez mais. "Nós o amamos porque ele nos amou primeiro." (1 Jo 4:19)

Quando todo o meu ser se permite ser tocado por Jesus há paz. A mulher "vai em paz", recebeu alimento de Jesus. Nada é dito de Simão, o fariseu neste final. É uma pena se ele se contentou em só dar de comer a Jesus, sem captar o alimento para a alma que sua presença irradia. Isto é típico do que se torna religioso e só pensa no "fazer". É meu lado perdido que consegue dizer: "Tem misericórdia de mim, pecador" e então ouvir: "Vai em paz".

Por fim, a pecadora é oficial e publicamente perdoada; quanto ao fariseu, na melhor das hipóteses — se chegasse a arrepender-se e vencer seu orgulho — caberia, talvez, o decreto do Senhor: “os publicanos e as meretrizes vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21:31).


A Deus toda a glória!


Carlos R. Silva
Outono 2014



Referências:

· Bíblia Sagrada:
   Lucas 7:36-50, 1 João 4:19, Mateus 21:31