Por modos inumeráveis,
Deus se revela a todos. Ninguém fica prejudicado pela revelação de Deus. No
entanto, algumas pessoas o recebem e outras não. Por quê?
Talvez porque algumas pessoas se desimpedem para Deus. Alguns ousam viver diante de um Deus livre.
É preciosa a definição
de Rubem Alves para a liberdade de Deus:
Há um texto de
transição no livro de Atos. O cristianismo caminha com força em Jerusalém. O
centurião Cornélio vive em Cesareia. Pedro é levado pela liberdade de Deus para
lá. São duas visões. A visão de Cornélio, em que um anjo o avisa de suas
orações e esmolas como pontos de contato com Deus; e a visão de Pedro, com fome
e em êxtase, convidado por Deus a ultrapassar os limites da religião: os bichos
impuros para prática religiosa conhecida de Pedro são puros aos olhos de Deus.
Pedro aceita o
convite. Vai à casa de Cornélio e lá descobre que a visão dos bichos
purificados fazia todo o sentido. Deus já estava em Cesareia antes de ele
chegar. Pedro não foi evangelizar apenas. Foi evangelizado pelos de fora. Deus
na casa de Cornélio é uma boa e inesperada notícia.
A grande notícia deste
trecho em Atos não é a aproximação ao cristianismo de alguém com notoriedade,
como Cornélio, chefe de uma tropa com cem soldados romanos, que provavelmente
também governava a província onde vivia. Também não é a descoberta de que o cristianismo
não é a religião de incultos apenas – tendo em vista a provável formação
intelectual privilegiada do centurião.
A grande notícia desta
história é que Deus não privilegia ninguém. Não há uma panelinha do céu. Deus
busca a todos. Ele está definitivamente aberto a todos. Um Deus que escolhe a
quem se revelar é um Deus só dos escolhidos, sem chance sequer de ser um outro
Deus. O Deus dos escolhidos é um Deus prisioneiro. Porém o Deus que Lucas quer
que conheçamos é o Deus de todos os homens e mulheres.
Na história de
Cornélio somos apresentados à liberdade de Deus, experimentada por Pedro e seus
companheiros de viagem. Então Pedro começou a falar: “Agora percebo
verdadeiramente que Deus não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas as
nações aceita todo aquele que o teme e faz o que é justo.” (Atos 10:34).
O texto sugere que havia em Cornélio uma postura que o tornou desimpedido para Deus. Revela também uma postura em Pedro que o tornara impedido para Deus até então. Ambos experimentaram a liberdade divina. Pedro é liberto pela liberdade de Deus enquanto assiste ao espetáculo de um não religioso experimentando-o com intensidade inquestionável.
A maneira como o
centurião vivia o tornou mais sensível à liberdade de Deus. Claro, este não é o
único modo de Deus revelar-se. Essa história não é um padrão, na verdade, é um
episódio não-padrão, um contraponto. É Deus correndo por fora! Deus além do
quintal da igreja incipiente. Daí a resistência de Pedro, mesmo em êxtase. Daí
seu susto, mesmo depois do êxtase.
Não podemos tratar
Cornélio como fazem alguns, como alguém que até se encontrar com Pedro era “ímpio”
ou que tenha se “convertido” depois de ouvir o sermão do evangelho de Pedro. O
testemunho do texto é que Deus é com os não-judeus como foi com os judeus.
Cornélio é um convite divino para conhecermos Deus pela sua liberdade e não
pelas nossas suposições.
A história inicia-se
relatando o que a torna surpreendente. Cornélio já amava a Deus antes de se
envolver com os aspectos religiosos de amar a Deus. “Ele e toda a sua família
eram piedosos e tementes a Deus; dava muitas esmolas ao povo e orava
continuamente a Deus” (Atos 10.2). Ele tinha uma vida com Deus maior do que a
vida com a religião. Uma genuína relação com Deus. Os não-judeus que buscavam
ao Deus dos judeus sem se converterem ao judaísmo eram chamados de tementes a
Deus.
A narrativa de Lucas
nos dá a conhecer é a prioridade que a vivência com Deus tem sobre a vivência
com a religião. É assombroso o fato de invertermos essa prioridade
frequentemente. Isso acontece quando a nossa vida religiosa, as programações da
religião e suas obrigações se tornam a única coisa em nós que tem a ver com
Deus. Então, fora do momento religioso, ficamos com poucos vestígios de Deus.
O que resta de Deus na
minha vida quando não estou nos ambientes da religião? O que sobra quando
tiramos a roupa de crente?
O anjo que aparece a
Cornélio em visão afirma que suas orações e esmolas tinham memória no céu. Deus
era tocado pelo modo como ele tocava as pessoas à sua volta. Enquanto Pedro afirmava
“jamais comerei algo impuro”. E quando o impuro toca em Deus mais que os puros?
A maneira como tocamos
as pessoas ao nosso redor marca o quanto nos aproximamos de Deus. As orações
chegam aos ouvidos de Deus, mas à sua memória chegam as esmolas, o modo como
tocamos os “pequeninos” de Jesus. Quando foi que Jesus, entre os homens foi
tocado desta forma? A resposta desmistifica nosso culto: “O que vocês fizeram a
algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram” (Mateus 25:40).
Cornélio era alguém
que não subestimava os sinais de Deus. Mesmo diante da religiosidade
excludente, sectária, de Pedro, ele ainda se mostra disposto a ouvir o que Deus
pode falar.
Pedro mostra-se como
um instrumento inadequado, poderíamos dizer. Primeiro insiste em riscar da sua
lista missionária quem não é judeu. Depois, mesmo com a agressiva revelação de
Deus, discute com o Céu para não abrir mão do que pensa. E, ao chegar à casa de
Cornélio, suas primeiras palavras afirmam que não gostaria de estar ali (Atos
10:28).
Mesmo assim, Cornélio
está aberto para Deus o suficiente para enxergar um sinal divino na vida de Pedro.
Deus se mostra, apesar da truculência de Pedro.
Gente de alma sensível
é o tipo de gente que experimenta Deus como um derramamento, como descrito no
texto. Uma história de sensibilidade não poderia ter outro desfecho. Não foi
estratégia, nem qualquer outra coisa. Foi sensibilidade reverente que
escancarou aquela casa para Deus e seu Espírito.
Veja a cronologia do
derramamento do Espírito Santo sobre todos os daquela casa. Pedro não fez
apelo. Enquanto pregava, o Espírito Santo foi derramado sobre todos.
A maneira como
Cornélio recebe o Espírito mostra como ele ouve a Palavra de Deus. Ele
experimenta o mesmo Deus, que já lhe havia falado, com uma nova mensagem. E no
meio de um sermão que nem precisa ser concluído. Agora vem a religião, mas Deus
veio primeiro.
O Espírito é vento
livre, sopra onde quer (João 3:8). Assim é a liberdade de Deus.
Solus Christus!
Compilado e adaptado de:
Elienai
Cabral Jr., Salvos da Perfeição, Ultimato
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